A primeira infância: cuidados para toda a vida - parte 1


o
Introdução
Este artigo pretende discutir alguns pontos centrais dos estudos de Maria Montessori acerca do trabalho docente com a primeira infância tendo como principal referencia bibliográfica A Descoberta da Criança, publicado pela primeira vez no ano de 1912, sendo revisado pela própria autora ao longo de suas pesquisas. A primeira infância, que compreende do nascimento até os seis anos, é a responsável por grande parte da formação humana, dos aspectos intelectuais, físicos, sociais e emocionais.
A primeira infância é a fase da vida humana em que se constrói verdadeiramente o alicerce para os próximos anos. Em seus primeiros anos de vida a criança com seu “espírito absorvente” (MONTESSOORI, 1912) capta todas as impressões do mundo externo e as torna implícitas em suas atitudes e personalidade. “É difícil de se imaginar o poder de absorção do espírito da criança. Tudo o que a rodeia penetra nela: costumes, hábitos, religião.” (Ibid., p.66)
Nesses primeiros anos de vida o que se apresenta à criança se tornará a própria ideia que ela provavelmente criará a respeito do mundo e das pessoas; portanto, há de se ter cuidado. Um cuidado de tamanha grandeza com as palavras, os gestos, os sabores, os ruídos, enfim, com a apresentação da vida em sociedade e da natureza das coisas.
Os cuidados na primeira infância devem ser ponto de reflexão constante de quem se empreita a trabalhar com essa faixa etária. Cuidados que vão muito além das preocupações com higiene, machucados, conflitos. São cuidados com um ser humano em formação integral: corpo – alma – intelecto.
Antes de dedicar-se às pesquisas sobre a educação integral das crianças pequenas, Maria Montesori fez experiências educacionais com crianças diagnosticadas como ‘dementes’, ou seja, com necessidades especiais. Tendo sido bem sucedida em sua empreitada, começa a questionar como crianças consideradas inferiores intelectualmente conseguiam, através de seu trabalho, alcançar resultados inesperados para elas naquela época:
Tais resultados eram tidos como miraculosos pelos observadores. Eu, porém, sabia que se esses deficientes haviam alcançados os alunos normais nos exames públicos era unicamente por haverem sido conduzidos por uma via diferente: tinham sido auxiliados no seu desenvolvimento psíquico, enquanto as crianças normais haviam sido, pelo contrário, sufocadas e deprimidas. Eu acreditava que, se algum dia esta educação especial, que tão extraordinariamente desenvolvera os deficientes, pudesse ser aplicada ao desenvolvimento das crianças normais, o milagre se espalharia por todo o mundo, e o abismo entre a mentalidade dos deficientes e a dos normais desapareceria totalmente. Enquanto todos admiravam o progresso dos meus alunos deficientes, eu meditava sobre as razões que faziam permanecer em tão baixo nível os alunos sãos e felizes, a ponto de poderem ser alcançados pelos meus alunos deficientes nas provas e inteligência. (p.41)

Montessori deixa-nos um legado em estudo denominado “A descoberta da Criança”. Ainda que com uma linguagem própria aos anos de 1912, encontra-se tão atual quanto as tecnologias emergentes. Simplificar tal estudo a uma denominação de metodologia de ensino (Método Montessori) com aplicações simplificadas à estruturação de ambientes físicos e materiais personalizados, seria como  reduzir as ideias da grande mestra a uma cartilha ou material de “Faça você mesmo!”. 
Assim, como uma cientista desbravadora do espirito humano, após os resultados positivos com crianças deficientes, a médica italiana embrenha-se de vez pelos caminhos da educação escolar, iniciando sua primeira Casa dei Bambini, fundada em 1907, numa casa popular em San Lorenzo, atendendo a crianças de 3 aos 7 anos de idade.  “Observar é transformar” – lema que Maria Montessori levou pela vida afora. Porém, como cientista que foi, jamais deixou de recorrer aos estudiosos contemporâneos como Séguin, Preyer, Itard, entre outros. Esses estudos lhe tomavam o tempo e esforço no sentido de aprofundá-los e levá-los à prática, ora considerando suas conclusões ora refutando. Para isso, somente a experiência, a ciência aplicada e seus registros é que poderiam confirmar sua hipóteses e criar um método que efetivamente favorecesse o aprendizado e o desenvolvimento integral das crianças pequenas. Tal método previa mais que a transformação de atividades. Segundo a pesquisadora, era preciso transformar o professor e a escola. O educador deveria ter “um espírito cientifico que sabe observar, respeitar o ritmo individual, facilitar a descoberta do mundo que é o viver diário da criança” (p. 10)
Continua a enfatizar sobre o perfil do educador para a infância: “É preciso que o educador, suficientemente dotado do “espírito do cientista”, sinta-se animado com a ideia de que, muito em breve, experimentará a satisfação de tornar-se um observador da humanidade.” (p.23). Além disso, aponta para o movimento de uma ação docente praxeológica: “Com efeito, ele (educador) aprenderá com  a própria criança os meios e o caminho para a sua própria educação; isto é, aprenderá com a criança a aperfeiçoar-se como educador. (p.23)”
Com relação à escola, Montessori ressalta que
De nada vale, portanto, preparar apenas o educador; é preciso preparar também a escola. É necessário que a escola permita o livre desenvolvimento da atividade da criança para que a pedagogia cientifica nela possa surgir: essa é a reforma essencial. (p.24)

Tal reforma escolar perpassa todos os aspectos: gestão, funcionários e equipamentos. Acerca desse último item, Montessori teve o cuidado com a criação de mobília específica aos pequeninos, que lhes proporcionassem fácil circulação, independência, contribuindo para o desenvolvimento de sua autonomia. “Quando falamos de ambiente, referimo-nos ao conjunto total daquelas coisas que a criança pode escolher livremente e manusear à vontade, de acordo com suas tendências e impulsos de atividade.” (p.67)
O cuidado com higiene e saúde também esteve presente em seus trabalhos, afinal este é um dos principais elementos para a sobrevivência humana e uma vida física e mental saudável. O respeito ao ser humano desde seus primeiros momentos de vida passa pelo cuidado. Nas mãos do cuidador (mãe, professor, ou outro) está uma vida em desenvolvimento. A responsabilidade ultrapassa ações rotineiras como o limpar, alimentar, ninar e vigiar. A maneira como se faz cada uma dessas ações, as intenções implícitas, as palavras e gestos em cada um desses momentos é que faz a diferença.
“A satisfação da vida interior, a possibilidade de se expandir é, sem dúvida, um fator importante, até mesmo o segredo da saúde física. O espírito sadio torna o corpo sadio; isto é, para ter saúde, deve permanecer unido a um espirito normal lúcido.” (p.69)
Os animais também alimentam, ensinam seus filhotes e os protegem. Por puro instinto, claro. Os seres humanos possuem mais que instinto, possuem raciocínio, pensamento, intelecto. Portanto, é necessário pensar nessas ações para que se tornem momentos de aprendizado, tanto para a criança quanto para aquele que cuida.
Montessori também enfatiza que as crianças, para desenvolverem seu espírito observador e suas habilidades, tanto motoras quanto intelectuais, devem ter contato com a natureza, ao contrário de ficarem fechadas em salas de aula. “O amor à natureza, como qualquer outro hábito, cresce e se aperfeiçoa com o exercício; não é, com certeza, infundido automaticamente, mediante uma exortação pedante feita à criança inerte e presa entre quatro paredes” (p.79) e completa “A criança, o maior observador espontâneo da natureza, sente, indubitavelmente, a necessidade de ter, à sua disposição, um material com que agir” (p.79).
Crianças que moram na Serra da Mantiqueira, mais precisamente no Vale do Paraíba, interior do Estado de São Paulo, podem sem dúvida, por intermédio da televisão ou na escola, terem acesso às informações acerca do desastre ecológico acontecido em Brumadinho, ou ainda sobre as calotas polares que estão derretendo na Antártida. Parecem, entretanto, realidades  distantes dessas crianças.  Ouvem a respeito, mas não se entusiasmam tanto pois talvez não tenham a ideia da dimensão desses fatos. Entretanto, se puderem participar de explorações em rios próximos e realizar experiências concretas sobre o desmatamento da mata ciliar (facilmente realizadas com terra e água) certamente poderão criar uma ideia sobre o desastre que uma ‘enchente’ da magnitude da tragédia de Brumadinho pode ocasionar. Gelo derretendo e enchendo copos podem dar sugestionar uma hipótese para a questão: “se todo o gelo dos polos derreter para onde irá toda a água?”
A curiosidade é inerente à criança. Aproveitar esse desejo de descobrir os segredos do mundo que o rodeia é papel do educador. A natureza fascina as crianças. Por isso o contato com o meio natural, a brincadeira com materiais não estruturados e a exploração devem fazer parte do dia a dia das crianças da primeira infância.
“A criança deve dispor de um vasto campo de atividade, ter a oportunidade de novas experiências, empreender tarefas difíceis e sentir, assim, a satisfação de um espirito audacioso que avança mais na conquista do mundo exterior.” (p.82)

Os estudos de Montessori atualizam-se quanto mais a neurociência avança em suas descobertas. Sua explicação sobre o funcionamento do corpo e da mente por meio de seu “Homem Branco e Homem Vermelho”, esclarece e exemplifica de uma maneira didática e de fácil compreensão como ambos, corpo e mente, se inter-relacionam e como essa interdependência influi na saúde geral do ser humano. “O trabalho mental deve ser acompanhado de sensações de verdade e de beleza que o reanime, e de movimentos que permitam a exteriorização das ideias e as projetem num mundo em que os homens devem auxiliar-se mutuamente.” (p.88) . A autora segue enfatizando a importância do movimento da criança pequena para que possa, com autonomia, aprender a movimentar-se pelos espaços e desenvolver sua consciência corporal: “A criança está incessantemente em movimento; não importa que sejam desconexos” (p.89) afirma acerca das crianças até os três anos de idade, após a qual tem início uma fase em que seus movimentos possuem um interesse fundamental: equilibrar seus conhecimentos e sua necessidade de movimentar-se.

Considerações preliminares
Estudar os postulados de Maria Montessori levam o educador a percorrer caminhos que elevam o respeito pela criança e a reflexão constante de sua ação pedagógica.
É preciso conhecer para compreender. Os estudos de Maria Montessori vão além de projeções de ambientes favoráveis à circulação das crianças ou construção de materiais pedagógicos estimulantes para o raciocínio. O que realmente a diferencia é a sua concepção sobre a criança e seu desenvolvimento, resultado de observações, análises e experiências sempre respeitando o lugar e o pensamento das crianças e educadores.
Suas observações a respeito do desenvolvimento infantil ultrapassam gerações e ainda se fazem desconhecidas de muitos professores de Educação Infantil.
 “Toda a educação da primeira infância deve estar penetrada deste princípio: auxiliar o desenvolvimento natural da criança

Comentários

Postagens mais visitadas